O que eu vi de mais interessante sobre a morte do Michael Jackson saiu na edição de agosto de 2009 da Caros Amigos, por José Arbex Jr.
A morte de Michael Jackson, anunciada em 25 de junho, criou uma histeria planetária que, entre outras coisas, mobilizou manifestações de rua nas mais importantes cidades e capitais do mundo e “derrubou” mega sites e portais como o Google, Twitter, YouTube e Orkut, pelo excesso de pessoas em busca de informação, imagens, vídeos. Em 3 de julho, só na primeira hora e meia de operação, um site colocado no ar pela família do cantor, com o objetivo de sortear ingressos para o velório (celebrado no dia 7, no Staples Center, Los Angeles) registrou mais de 500 milhões de acessos (120 mil visitas por segundo). Apenas a cerimônia de posse do presidente estadunidense Barack Obama, em 20 de janeiro – um evento político e histórico extraordinário, dadas as circunstâncias e personagens envolvidos -, conseguiu atrair um número de internautas e de acessos equiparável ao verificado durante o velório do cantor. A morte de Michael Jackson galvanizou um bom pedaço do planeta.
Por que?
Claro: trata-se, em parte, da identificação entre fãs e ídolo, relação que está muito longe de constituir novidade. Obama, com certa razão, equiparou Jackson a Elvis Presley, Marilyn Monroe e Frank Sinatra, algumas das celebridades estadunidenses que, em seu próprio tempo, mobilizaram legiões. Faltou Obama esclarecer que, como Jackson, mas em circunstâncias completamente distintas, Presley e Marilyn também foram esmagados pelos mitos que personificavam e tiveram um final de vida trágico, emoldurado pela absoluta solidão e por uma angústia existencial apenas mitigada por doses cavalares de drogas (calmantes, analgésicos, álcool, maconha, não importa). Sinatra, treinado nas fileiras da máfia ítalo-irlandesa-estadunidense, aparentemente suportou com maior equilíbrio e cinismo o preço cobrado pela indústria criada em seu nome.
Também é claro que a grande mídia jogou todo o seu peso na realização de uma cobertura sensacionalista da telenovela Michael Jackson, certamente lucrativa e, no fim das contas, coerente com o seu papel de motor da “indústria cultural”. Raras vezes ficou tão óbvio o fato de que não há mais fronteira entre jornalismo, entretenimento, publicidade e propaganda: tudo vira show e telenovela, tudo está à venda - até mesmo ingressos para um velório. No Brasil, em particular, a audiência mal tinha recuperado o fôlego após o desastre do voo 477, quando estourou a “bomba Jackson”. No meio do caminho havia a crise no Senado, talvez a mais séria de sua história. Diante da imensa gravidade que foi a morte de Michael Jackson, a mera falência do senado brasileiro tornou-se um evento ameno, sem grande importância, quase tão pálido quanto o era a face do defunto “rei do pop” (assim como, durante o “show do voo 477” quase não se notou o massacre de povos originários do Peru que lutavam contra a privatização de seus territórios, na Amazônia).
Ora, precisamente em momentos de grande crise política e social, uma boa história emanada da esfera da vida privada (melhor ainda se for escandalosa e envolver “celebridades”) serve para desviar as atenções das articulações e tramóias palacianas. Panis et circensis. Sociedade do espetáculo. Qual a novidade?
A novidade não está no espetáculo em si, mas sim na proporção, no extraordinário poder por ele assumido no mundo contemporâneo. Os tais 500 milhões de acessos em 90 minutos não aconteceram numa conjuntura qualquer, mas numa situação extrema de instabilidade mundial, configurada pela crise do sistema financeiro global, pelas incertezas quanto ao futuro das economias de países capitalistas centrais (incluindo Estados Unidos, Alemanha e França), pela multiplicação de focos de tensões regionais latentes (no Oriente Médio, na América Latina, na Ásia) e pela sombra ameaçadora da catástrofe ambiental, entre outros. É a morte de Michael Jackson, não a desordem do sistema capitalista, que tem o poder de mobilizar a imaginação e as energias de centenas de milhões de jovens e trabalhadores em todo o mundo.
Algo da mesma ordem, mas com intensidade distinta, acontece todos os anos, durante a cerimônia de entrega do Oscar, em Hollywood, quando pelo menos 2 bilhões de telespectadores ficam prostrados diante da TV para assistir ao desfile de artistas milionários. Em escala local, foi precisamente o que aconteceu no começo de julho, por exemplo, na Espanha: numa mesma semana, 50 mil torcedores comparecem ao estádio Santiago Bernabéu apenas para saudar o jogador brasileiro Kaká e outros 80 mil para receber o português Cristiano Ronaldo, ambos contratados pelo Real Madrid por valores que atingem, somados, a cifra de quase 500 milhões de reais, num momento em que há recorde histórico de desemprego no país (4 milhões de trabalhadores) e em que forças da extrema direita obtiveram avanços extraordinários na disputa pelo Parlamento Europeu. No caso de Cristiano Ronaldo, a histeria foi tamanha que o clube contratou uma equipe permanente de segurança privada para proteger o jogador do assédio de fãs.
A magnitude das cifras envolvidas em todos esses episódios, a quantidade de energia mobilizada pela “gente comum” em adoração aos seus ídolos, a abrangência planetária das redes sintonizadas num único ponto – não importa se é o palco do Oscar, o Staples Center ou um estádio de futebol – são manifestações sintomáticas de um mundo cada vez mais padronizado pelas tecnologias do espetáculo e, inversamente, por um abismo cada vez maior de perspectivas. Os ídolos, fabricados e projetados por diabólicas máquinas caleidoscópicas, hipnotizam o público e anestesiam o sentimento de angústia de bilhões de seres humanos internados no infame planeta Auschwitz construído pelo capital, cada vez mais solitários, isolados, fragmentados e destituídos de alternativas transformadoras do mundo (como Jackson, aliás, procurava, em vão, no consumo desenfreado de objetos e no anestésico químico o alívio de sua própria dor).
A “novidade”, definitivamente, não está em Michael Jackson – nem nas Madonnas, nos Kakás ou nos Ronaldos -, mas no grau de demência a que o neoliberalismo conduziu a humanidade em seu conjunto. Deuses planetários vazios são ícones adorados por uma multidão planetária de fantasmas.
O bizarro balé do clip Thriller, quem diria, é a própria metáfora do nosso mundo.
José Arbex Jr. é jornalista.
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